Correspondência] Abraços daqui,

São tempos de desencontros. Ao meu redor, todos usam fones de ouvido, para evitar a voz do outro. Ou estão envolvidos com os celulares, deixando de olhar em volta e, assim, de perceber o caminho ou de perceber quem chega e quem se despede. Mal sentimos a falta que alguém faz: preenchemos a cama com a nova temporada da série favorita, podemos escolher não ter filhos, terminamos relacionamentos por mensagens, saímos de um amor como saímos de um grupo de WhatsApp.

Estar sozinho é uma companhia cômoda: não precisamos falar sobre política, religião, futebol, sobre o que sentimos… Não precisamos falar. A realidade, agora, é uma inversão: um mundo em que não precisamos falar mais porque não “viraliza”, ninguém curte, ninguém comenta. Ao meu redor, todos usam fones de ouvido. E, enquanto selecionamos o que queremos ouvir, deixamos de ouvir o ensinamento do outro.

Não é uma crítica, é uma constatação: são estes tempos. Não é mais possível as cadeiras nas calçadas e as conversas de janela a janela (no Brasil, onde moro, a violência urbana impôs muros altos, grades e recolhimento; há até lugares onde o silêncio é a condição da convivência). E já não existe mais a espera por uma carta, nem a escrita sem pressa. Só as mães esperam, porque ainda há uma natureza que não conseguimos dominar.

As notícias correm na mesma velocidade com que abrimos os olhos, multiplicam-se em toda parte. Adquirimos habilidade em digitar (mais do que em dizer), ao mesmo tempo em que abreviamos beijos e abraços – agora, é “bjo” e “abs”. Até deixamos as saudades para depois, “depois eu ligo”, “depois eu respondo”. São tempos de desencontros.

Pensei neste post ao remexer em meus guardados. Na incontável tentativa de organizar a vida, encontrei palavras soltas em gavetas, afetos em sépia e diversos para sempre em agendas. Uma coletânea dispersa de rascunhos de sentimentos: bilhetes, cartas e pensamentos desgarrados que escrevi ao caminho ou a amigos e a amores que chegavam e que se despediam; a vida que fui passando a limpo. O bonito que eu havia esquecido, certa delicadeza ainda a salvo. Por isso escrevo. Escrever é um modo de guardar o tempo e os fragmentos de encontros. Escrever é meu inventário das horas.

Dessa forma, eu me encontrei com meu pai antes do câncer, com minha melhor amiga da infância, com um amigo de última hora, enfim, com as palavras que me procuravam:

Querido companheiro,

escrevo-lhe para lembrá-lo aquelas tardes em que nos vimos, sem pudores, escrevendo cartas de amor no meio do tempo, em praças e na rodoviária da Cidade. Só nós sabemos o quanto nos custou ir, não é verdade? Inclusive, nos custou uma coragem que ainda não sabíamos tê-la. Depois de tudo, até achamos graça de certas coisas.

Escrevo-lhe, então, para lembrá-lo que a vida é mais ou menos assim: uma coragem de última hora. E é também esse ir, e essa graça, e é o que passamos a limpo – feito quando a gente escreve para salvar o bonito.

Desejo que você siga com aquele banner que dizia: “Escrevo histórias de amor”. E que siga escrevendo e reescrevendo todos os amores do mundo. Por estes dias, outra pessoa me ensinou, indo cruzar o oceano, que o peso cabe em uma única mala e que as importâncias sempre vão caber em nós. Desejo que você siga com esta carta e com o belo do que foi e do que fomos juntos.

Escrevo-lhe ainda para lhe dizer que, quando dezembro chegar, você fará falta no Natal. E depois, e depois, e sempre. Porque as pessoas, mais do que as coisas, nos fazem falta – mesmo que, tantas vezes, a gente teime o contrário.

Escrevo-lhe porque, enfim, você bem sabe, escrever é um modo de ir com alguém.

Paro por aqui, porque já nem sei se esta carta é para mim ou se é para você.

Escreva-me também, que as palavras são um caminho da gente se encontrar.

Abraços daqui,

ilustração de um abraço entre um homem e uma mulher, feita pelo artista plástico Carlus Campos
A aquarela de um abraço, feita pelo artista plástico Carlus Campos (@carluscampos_art, no Instagram), para ilustrar um cartão de Natal que escrevi e foi remetido aos leitores do jornal O Povo, há três, quatro anos. Qualquer dezembro, eu posto o cartão.

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