Entre dezembros e janeiros] Remendar a vida

Nós, que escrevemos estes tempos – seja no jornalismo, ou nas notícias particulares para alguém -, ficamos com receio de dizer sobre alguma felicidade. Nos últimos dois anos, o riso foi encoberto e, mais do que isso, foi desfeito. Temos, agora, certa vergonha de saber das alegrias e uma timidez em senti-las: porque milhares estão mortos ao nosso lado e outros milhares estão feridos à nossa direita. É improvável que algum ser humano, no mundo real, não tenha sido atingido pela pandemia de covid-19 – em cheio ou pelos estilhaços.

A alegria contida é uma das sequelas da pandemia de covid-19. Porque é só metade ser feliz sozinha/sozinho. Se o corpo levará um tempo para recuperar o fôlego e outras funcionalidades, igualmente, o pensamento precisará de um tempo para recuperar a ideia de felicidade; tempos ainda desconhecidos, sobre a doença e sobre as curas.

Mas que, por serem desconhecidos, também nos provocam a descoberta. Pela ciência, pela fé, uns pelos outros, todos por um, nós desvendaremos as curas e as felicidades. Porque é assim, desde que o humano é humanidade. A propósito, muitos de nós, a partir do primeiro dia de escuridão desta pandemia, já fazem esse trabalho de formiga. E investigam o invisível: aquilo capaz de salvar corpo e alma. Sejam vacinas, remédios ou alegrias.

Sim, eu sei (porque também sinto, muito) é impossível escrever os sentimentos desses dias sem dizer dos mortos e dos feridos, de todas as perdas e fomes, enfim, das faltas – e a felicidade tem sido uma ausência, em um País faminto e de governos corruptos e desumanos; desigual, injusto e sem paz.

Mesmo no Natal e no Ano Novo – ou, justamente, porque é Natal e Ano Novo e as luzes de dezembro iluminam os pedintes -, é impossível não escrever os desalentos que nos cercam. Diante dos milhares de mortos pela covid-19 e pela violência cotidiana (que não deu trégua nem na pandemia), no Brasil, e das mães que catam lixo para comer e para alimentar os filhos, e dos olhos da tristeza que máscara nenhuma consegue encobrir, a alegria tem se encabulado de ser alegre.

Eu tenho pensado, enquanto escrevo os sentimentos dos dias: não sei se tem cura para a morte porque roubaram o oxigênio, ou para a violação de direitos humanos, ou para a condenação dos pretos e das mulheres, ou para o linchamento de travestis, ou para a humilhação dos pobres, ou para a tortura de crianças que roubaram passarinhos, ou para os estupros das meninas, ou para a dor das chacinas, ou para as chagas de uma floresta inteira.

Eu sei que tem (a chance d)o contrário, mas a cura, o “vai ficar tudo bem”, quando já se subtrai boa parte do que é, honestamente, eu não sei se tem. “A vida nunca mais foi a mesma”, uma amiga desabafou, aos 47 anos, sobre o abuso que sofreu aos dez. Uma perda é uma experiência definitiva, ainda que seja também transformadora. Por esses dias, em uma entrevista, uma psicóloga me respondeu: “Uma pessoa enlutada vai ser sempre enlutada”, o que resta é a convivência com o que se perdeu. E eu só sei que a vida vai se remendando.

No remendar-se de 2020 e 2021 e no curso da pandemia que não acabou, nadando ainda contra a correnteza da covid-19, nós escrevemos este dezembro como quem avista um palmo de terra firme. Mandamos notícias, pelos jornais ou pelas saudades, do tempo chamado presente e de estar presente. Para nos manter vivos, insistimos na necessidade da vacina e dos cuidados, e na mudança do que se foi, e no amor que restaura e que inaugura. Há alguma alegria em nós, sentimos, se o coração pulsa (por nós e por alguém). É um resgate. Eu escrevo, profundamente: que bom que você está viva/o, minha amiga, meu amigo, meus amores. E que eu também estou, porque só assim temos chance para o que houver; inclusive, a chance de nós juntos, neste mundo imenso, depois de tudo.

Mas eu ainda escrevo com receio de dizer alguma felicidade, para não machucar quem está todo machucado pela tristeza; é preciso trocar, delicadamente, os curativos. Um dia de cada vez.

Neste dezembro de 2021, quando dezembro de 2019 ainda não acabou, eu escrevo com receio de dizer que alguma felicidade existe, mesmo frente a frente com o Natal e o Ano Novo, quando acendemos as luzes da noite e da humanidade. Quando procuramos a alegria, apesar da tristeza; quando a partilha ganha mais doações, apesar da escassez de recursos financeiros e emocionais; quando desejamos, lá dentro de nós, ondem vivem palavras adormecidas, os encontros, apesar dos desencontros; quando reinventamos o nascimento, apesar do calvário que também sabemos. Enfim, quando a esperança que temos, já esgarçada, é costurada noutro pedaço de esperança que nos dão, e noutro, e noutro… (a propósito, eu tenho reparado, ao longo do tempo: a esperança, inteiramente, é essa colcha de retalhos).

Remendamos a vida.

Nesse remendar, minha família fez um Natal. Com menos gente do que costumava ser, com máscara e álcool em gel, com vacina e fé, mas um Natal vivo e recém-nascido de cada um de nós: das nossas forças e das nossas resiliências, da nossa vontade do amor.

E eu vi, na minha timeline, que tantos também fizeram nascer um Natal – não sem dor e muito menos sem a esperança. Juntos e amparados. Assim, com mais de um, ensaiamos a alegria outra vez. Por isso eu escrevo, hoje, sobre as felicidades certas que, cuidadosamente, vão saindo da clandestinidade; pouco a pouco, a cada dia que amanhece. Vamos reencontrá-las.

Mesmo sem uns e outros; mesmo entre os esquecimentos, as demências e as depressões que vão tirando uns dos outros; mesmo na pandemia – ou do outro lado do cabo de guerra -, rasgados por dentro, precisamos insistir naquilo que nos salva: em alguma alegria, na busca indefinida pela felicidade. É um ensinamento e um aprendizado, de geração a geração. É humano e é da vida.

Vida que segue equilibrista.

Um dia depois do outro, atravessando as noites, precisaremos de inúmeros natais, para recuperar o fôlego e a ideia de felicidade. Mas hoje é (sempre) um ponto de partida.

Sigamos, daqui a pouco será janeiro outra vez.

Tempo, tempo, tempo,
que costura um fim em um começo,
uma história em outra,
uma memória em nova existência,
por linhas tortas ou pela corda bamba entre dezembros e janeiros,
depois das distâncias,
depois dos medos,
depois das perdas,
apesar dos pesares, ou no meio deles,
houve os abraços possíveis.
E haverá. Porque remendamos a vida.

 

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