Mais uma de amor] Eu não me despedi de você

coração de areia:
basta o vento soprar,
que ele vagueia.

Eu não ia mais escrever. Não essas palavras de amor. É uma grandíssima besteira, em tempos de guerra e fome, você contrapõe: “O amor não é intelectualizado”. E é inútil escrevê-lo porque nunca se diz, não se define, não tem palavra que o abarque; o amor está sempre escapando pelas mãos dos amantes.

Eu não ia mais escrever. Não essas palavras de amor. Porque a palavra não traz de volta, quer dizer, até traz; porque a palavra não faz o encontro, quer dizer, até faz. Mas eu não sei dizer o que faz ficar. Talvez, uma noite de chuva e, porque você está perto, o céu pode se despedaçar em trovões que, ainda assim, haverá céu. Ou um dia de um segurar a mão do outro no consultório médico, e na alegria, e na tristeza, e em cada travessia. Ou ainda todos os instantes em que você me fotografou distraída; eu, nua e linda, leve(-me), para sempre, no seu olhar. Talvez, nós ficamos nos mil e um perdões e em tudo o que vivemos juntos. Até na dança que dançamos sem saber dançar.

E então você me e se pergunta por que nosso amor não deu certo. Acontece que deu: ele foi amado, e muito bem amado. Nós sabemos disso, nas entrelinhas de nós dois. Eu não queria essa despedida, mas é da vida chegar e partir. Ou “rasgar-se e remendar-se”, na beleza de ser do Guimarães Rosa. Amor é também andarilho e precisa seguir viagem até o próximo pouso. O amor é livre e sempre será. Força das águas, que embala um rio até o mar. Amor não é acomodação.

um pouso de borboleta me diz mais sobre o que é o amor do que mil palavras.

Mas você, que imaginava Drummond e Clarice juntos, queria o amor dos dicionários e dos poemas do século passado; queria o amor apaixonado às segundas-feiras; queria o amor das canções do Milton e o amor quase oracional do contar de Bethânia; queria ainda o amor de seu Moreira Campos, tanto para tão pouca vida, que lhe parecia maior do que o nosso. Nosso amor foi grande também, veja: tanta coisa coube nele, só nós sabemos o quanto. Tantas idas e vindas. Os seus filhos, os meus sonhos, nossos mundos. Tantos “abraços, e beijinhos, e carinhos sem ter fim”… Nós dois, inteiros, cabemos nesse amor, afinal. Só nós sabemos as vezes que desfizemos as malas e as certezas, e que mudamos de casa e de pensamento para um morar no outro.

Nosso amor foi grande, sim, e foi único: só nosso. Lembra quando a gente desenhava o tamanho do mar e os rios voadores, para mergulhar? E mergulhamos.

Acontece que amar é navegação, é maior. Eu navego e me desdobro.

Eu não ia mais escrever. Não essas palavras de amor. Então, você me provoca: mas por que não foi igual ao amor daqueles melhores amigos que envelhecem sem perder a ternura um pelo outro? Que se amam como se houvesse amanhã, sem medo de não haver? Eu lhe respondo: quem lhe disse que o amor permanece igual se eles já não são mais os mesmos? Quantas vezes esse amor se transformou, para continuar amor?

Nós também já nos amamos muitas vezes, todas as vezes. Seria injusto dizer que não foi assim a esse amor que resiste desamar. E também trouxemos o amor até aqui, atravessando muitos anos. Veja as estradas que abrimos dentro de nós, por altos e baixos, piçarra e poeira, caminho das pedras. “Chegamos ou não chegamos, é pelo sonho que vamos” – esse era o nosso mapa, lembra? Siga com ele, que eu também seguirei.

Eu não ia mais escrever. Não essas inutilidades. Mas você me faz uma última pergunta, enquanto desocupa o armário de roupas, a estante de livros e o corpo de abraços. “Quando um amor vai embora, o que fica?”. Eu ainda não sei ao certo, a vista está embaçada pela chuva. Sou toda chuva, aliás.

Talvez, fique alguma paisagem nessa viagem supersônica. Talvez, fique o bonito desse amor ter chegado, o belo de ter existido – feito nascer e por do sol, que sempre é uma vez única. O que eu sei é aquela velha canção do Milton: “O destino que se cumpriu/ De sentir teu calor / E ser tudo”.

Pensando no que responder – mais a mim do que a você -, eu quero que fique a graça da nossa história. Das vezes que foi bonito – porque também foi. Das vezes que foi feliz, porque também foi. Se vamos amar mais e melhor, isso são outras histórias. Espero que sim porque o amor é uma força vital, eu acho. “Por mais que o matem (e matam) /a cada instante de amor”, eu fico com Drummond. Você pode levar Clarice: “Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento”.

Eu espero que existam outras chances. Talvez com você, mas, principalmente, comigo. Eu espero me amar mais e melhor, depois de você, ou por causa de você, ou apesar de você.

Eu não ia mais escrever. Não essas inutilidades. Mas eu ainda não me despedi de você. O certo deste instante é que, enquanto você cruza o corredor da madrugada, eu estou sem rumo, meu amor, confesso. Quando amanhecer, vou-me embora com as garças. Por ter amado (você), eu experimentei o voo.

A propósito, qualquer dia depois desses, talvez seja eu na outra margem do rio, que você fotografa enquanto navega.

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