Saudade textual] Estrada de Canindé

“Travessia” é uma das palavras de que eu gosto. E significou, por esses dias mais do que antes, a passagem do tempo, para mim. Tanto, que eu escolhi tatuar “travessia”, no próximo dezembro, quando 2020 passar e eu passar por este longo 2020, como marca do que eu vivi – e do que me falta viver. Tantos “atravessamentos”, considero assim, meus, intransferíveis, e com os outros.

A travessia me diz para ir: por terra, pelo ar, pelas águas. Que a vida é movimento: grão de areia, vento, rio. Caminho que coloca à prova o caminhar e forja o que, singular e universalmente, somos. Os atravessamentos – próprios e alheios – nos transmutam, eu, sinceramente, acho.

Muito antes da atual pandemia de covid-19, eu experimentei o significado de travessia, nesse sentido de transformação, quando fui a pé a Canindé, há nove, 12 anos. A cidade fica a pouco mais de cem quilômetros da Capital cearense e é ponto de peregrinação dos devotos de São Francisco, como uma Santiago de Compostela sertaneja (falo na proporção da dimensão espiritual). Existem romarias antigas, de geração para geração, que mantém essa travessia, entre setembros e outubros.

A primeira vez, eu fui pela fé: era 2007, ou 2008 (não sou boa com os números), e meu pai tinha recebido o diagnóstico de um tumor no cérebro; fui romeira, pedindo a cura. Em 2011, a segunda vez, fui por uma pauta: o jornal O Povo mantinha uma seção, chamada “Entrei na história”, que narrava um fato a partir da vivência do próprio repórter, um jornalismo na primeira pessoa e capaz de ser plural, era mais ou menos assim.

Participei da romaria Dom Joaquim, naquele outubro, uma das mais tradicionais. Eu lembro que os romeiros não se sentiam à vontade com a curiosidade jornalística feito sombra e nem eu me sentia à vontade naquela situação, anotando tudo antes que o sentimento escapasse, um “peixe fora d´água”. O jornalismo, na verdade, é desconfortável (rs).

Hoje, eu revisitei o texto dessa reportagem de nove anos atrás. Passeando pelas linhas e entrelinhas, ainda pude ver a decepção da editora por eu não ter escrito em primeira pessoa, por não ter explicitado os meus sentimentos e por não ter elaborado aquele texto que todos (da Redação, nosso pequeno universo) esperavam que eu escrevesse. Acontece que eu não gostava, e ainda não gosto, de ser a notícia; principalmente, diante de quem é a própria história. Também não é sempre que conseguimos escrever o sentimento do mundo (como escreveu Drummond); aliás, na realidade de uma Redação de jornal, isso é muito raro. Mas isso é também muito pessoal. Sigamos.

Escolhi essa saudade textual por significar mais uma travessia, para mim. Aquele caminho que se pensa não conseguir caminhar e, no entanto, que é preciso fazê-lo. Sim, é muito difícil atravessar o cansaço, as dores, os medos (não conseguir é um deles), os escuros, as pedras, o que nos parece sem-fim; tudo o que nos machuca. É preciso ter fé, e a fé é algo difícil de se ter porque não é palpável e não é nenhuma definição. Fé em si, no outro e no que não está em nós – naquilo que nos ultrapassa e é mistério.

Chega o tempo de se levar apenas o necessário (seja a lembrança de uma felicidade ou um canto insistente na alma), de carregar a si próprio com toda a força possível e de seguir em frente.

Revendo, hoje, a matéria no jornal, eu não sei bem como consegui atravessar tudo o que atravessei. Só sei que foi(é) como me diziam as pessoas que já fizeram suas travessias: “Não pare de caminhar”.

E eu vivi momentos indeléveis na estrada de Canindé. As nuances das horas, a partilha do que se tem (qualquer comida, um gole d´água, uma palavra que nos sustente, um abraço que nos descanse…), a presença das estrelas, a certeza de que eu não ando só.

Eu também fiquei decepcionada com o texto que escrevi, na época. Eu queria ter sido Drummond, naquele deadline. Mas, talvez, nessa reportagem, no meu próprio texto, tenha algo essencial, alguma permanência de todos aqueles atravessamentos. Eu nunca vou saber, ainda que essa seja sempre a minha busca.

A estrada de Canindé me trouxe a este ano de 2020, acuado pela pandemia de covid-19, tão difícil e doloroso quanto belo em seu avesso. Aqui estou, mais uma vez, frente a frente com o que me atravessa: o cansaço, as dores, os medos, os escuros, as pedras, o que parece sem-fim porque machuca; e as nuances das horas, a partilha do que se tem, a presença das estrelas, a certeza de que eu não ando só, o mistério da fé. Aquele caminho que se pensa não conseguir caminhar e, no entanto, que é preciso fazê-lo. A própria vida. Uma travessia que me diz, insistentemente: “Não pare de caminhar”.

P.S. reproduzo os textos como foram publicados nas páginas do jornal O Povo (4.10.2011). Eu não tenho mais os originais (lembro que muita coisa foi cortada, na edição, para ainda caber o máximo possível). A reportagem completa tem também uma segunda abordagem, além do texto principal sobre a romaria a pé, que relata a falta de estrutura de apoio aos romeiros, os festejos na Canindé de São Francisco e o roteiro palmilhado. Mas só reproduzo, no blog, uma das páginas.

Texto principal – Estrada das chagas e da vida.

A esperança sustenta o caminhar, de Fortaleza a Canindé. Ou pelo comprido da vida. Entre o cansaço, o recomeço e o conseguir, repórter do O POVO fez-se romeira de São Francisco.

A longa estrada das chagas, de Fortaleza a Canindé (pouco mais de 132 quilômetros, via Maranguape), de altos e baixos e pedras no caminho, demonstra que a vida, por si, é romaria. Chega o tempo de se levar apenas o necessário (seja a lembrança de uma felicidade ou um canto insistente na alma), de carregar a si próprio com toda a força possível e de seguir em frente. Entre os dias 28 de setembro e 2 de outubro, O POVO seguiu a romaria Dom Joaquim – que, há mais de meio século, ampara e orienta os romeiros de São Francisco até a Basílica de Canindé. E vivenciou o cansaço, o recomeço e o conseguir.

“O estirão maior é daqui pra Maranguape. Chegou lá, chegou em Canindé”, esperança um dos romeiros, na primeira madrugada. Outro afirma que, ultrapassando a Ladeira Grande, avista-se o destino. Um terceiro amplia: tem-se que vencer a escuridão de mais duas noites, até Campos Belos. O mais descrente só bota fé quando Santo-Antônio-sem-Cabeça desponta no alto da Caridade. O certo é que cada um vai suportando uma cruz e uma fé.

Eva Maria Camilo Ribeiro, 42, de Pindoretama, agente de saúde, leva todo o peso do câncer da irmã mais nova. Mais atrás, dona Valdiva, 70, e Silvana, 38, mãe e filhas diaristas, sustentam-se uma na outra. Dona Valdiva sobreviveu ao atropelamento de 2002, Silvana ressuscitou depois de uma depressão. Por vezes, as duas passam cantando. É que a música desvia o pensamento da dor.

Outro alívio é o da solidariedade. “Você tá cheia de dor e dá massagem nos outros… Nem lembro mais a dor que tenho”, afirma Jéssica Almeida Braga, 27. Na romaria, a estudante de Estatística se torna a “cirurgiã dos calos”. A dois dias de distância de Canindé, já havia drenado, com agulha e linha de costura e álcool com cânfora, as bolhas de uma dezena de pessoas.

Já o enorme Chicão oferece massagens e apoio há 33 romarias. Francisco Ferreira dos Santos, 58, não tem só o nome do santo; tem a disposição para a santidade. “Quando entra na romaria, sabe que vai ser irmão do outro”, determina. “Quando ajudo, fico mais fortalecido”, completa.

Na longa caminhada, tem momentos em que você se torna só dor. É nesse instante que se sente como um abraço é necessário. E é fundamental ter alguém que lhe ofereça um sorriso, um bom-dia. Você reconhece o valor de um banho, de um canto para se deitar. E, mais do que isso, deseja dar o descanso a alguém. Por isso, Rosiris Passos, 64, “psicanalista em formação”, oferece rede, gel de copaíba e boas-vindas. O par, Francisco José Ramos, segue ao lado, ora dirigindo um carro de apoio, ora de mãos das, com a mesma disposição do espírito: doa a paciência e madrugadas de sono. “Eu levo de volta a sensação de ter sido útil”, diz.

E qualquer um, ainda que leve nada no seu surrão, pode ser útil na história do outro. “Eles deixam aconchego, calor humano. E quem vive sem ele?”, demanda o cirurgião-dentista Delano Cidrack, que acolhe os andarilhos quando eles pousam em Maranguape. Já dona Lurdes, 69, leva os romeiros como filho. “Venho por amor”, sorri.

Para ter a alma leve, deixa tudo para trás: o casamento desfeito quando os cinco filhos eram crianças e os 25 anos na fábrica de castanha de onde saiu com R$ 6 mil (comprou um terreno para o filho, com o apurado). Na ladeira, pede força “ao Divino Espírito Santo. Passo o tempo pedindo a sandália de São Francisco e de Santo Antônio”. Os pés chegam intactos à Basílica e caminham ainda mais rápido para levar dona Lurdes ao seu paraíso: “A primeira imagem que avisto é São Francisco, de braços abertos, lá no alto”. A romaria finda no azul do domingo, a cidade acordando para a missa das 7 horas, preenchendo as janelas de curiosidades pelo povo que não desiste, caminhando devagar. E é quando o odontólogo João Leônidas Campos Monteiro, 66, se reencontra: “Eu procurava, na romaria, entender a mim mesmo para entender os outros que chegassem a mim. Para que a caminhada fosse de fraternidade”.

Há momentos, na estrada das chagas ou da vida, em que até o silêncio pesa. Há horas em que os minutos não passam. Mas, ao fim da romaria, compreende-se que há uma sequência de amanheceres depois das madrugadas. Que os bons existem em maior quantidade. Que, por vezes, é mais importante prestar atenção no caminhar do que no caminho. E se o horizonte lhe parecer muito distante, mire a estrela mais próxima.

“… era um mundo de terra.
… era a riqueza do nada.”

Coordenada – Em memória do pai.

É colocar os pés na estrada, para o pensamento ir buscar seu Zequinha – como é retratado o pagador de promessas José Alves Braga, que iniciou a romaria Dom Joaquim em 1958. “Seu Zequinha estava mais para anjo do que para humano. Ele acolhia a todos”, atenta o romeiro Francisco José Ramos. Um dos filhos, o aposentado José Gomes Braga (Dedé), 54, lembra bem aquela aventura ao lado do pai.

A estrada era um mundo de terra, “não tinha a (BR-)020, era carroçal, mesmo!”, admira-se ainda hoje.

A romaria Dom Joaquim é considerada a mais antiga. Chicão, 32 anos de estrada das chagas, vai contando as andanças. Um grupo vinha sempre antes, para abrir uma risca uno mato e descortinar Caridade, por exemplo. Só havia um carro de apoio, “uma caminhonete F-75”, indica Chicão. Era a riqueza do nada. Comunicação “era a coisa mais difícil do mundo” – Sílvia passa pela conversa, partindo dos anos de 1980. “Era telefone público, de ficha!”, ri-se. “A gente ficava mais tempo na fila do telefone do que no descanso”, compara.

A história é longa e bonita. E se renova a cada ano. Seu Zequinha devia a São Francisco a cura da asma. Um outubro de 1985, imaginou caminhar até Canindé. Raimunda Gomes Braga, 86, a dona Mundinha, acompanhou o marido na promessa. Até que a morte os separou, em 2006. Ela segue resistente (principalmente, às recomendações dos filhos e médicos), vai até onde o sono deixa. No ponto de apoio seguinte, a pequena Sofia, três anos, já ensaia os primeiros passos na romaria, em ciranda com as memórias do bisavô.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *