Construção] Olhar de dentro para fora

Uma casa é feita de muitos anos. Comprei a minha em 2000, com a ajuda dos meus pais. Na época, era uma dessas “casas de boneca”, na periferia da Cidade: miúda, mas com o alívio de ter um quintal – onde reinava uma bananeira (recém-plantada pelo primeiro dono), muro baixo (que mal delimitava privado e público), parte igual de um conjunto de residências brancas.

Com o plantão noturno na televisão, depois do dia na redação do jornal impresso, juntei dinheiro para aumentar o muro, acuada pela insegurança que domina as metrópoles brasileiras, e mandar fazer os portões de madeira que eu mesma tinha desenhado, imaginando.

Sala de estar, quase jardim.

Nos anos seguintes, recortei ideias das revistas de arquitetura e fui elaborando a Casa do Abraço: uma parede de tijolo aparente, mais varandas e cores, os janelões de vidro e madeira. As janelas grandes, fora do padrão, iriam custar caro, mas também iriam significar poder ver a chuva de qualquer compartimento da casa.

Gosto da chuva, desde que tomava banho de bica, improvisada, nos telhados, pelos invernos. Moro em Fortaleza, capital do Ceará (Brasil), uma metrópole que vem se tornando cada vez mais quente pelo desenvolvimento insustentável que mantém. Em Fortaleza, ainda se cortam árvores para abrir trânsito e se aterram lagoas e rios para a construção de moradias e centros comerciais. A temperatura média da Capital cearense é acima de 26ºC, durante o ano inteiro, e o vento do litoral tem esbarrado nos edifícios à beira-mar. Por isso, aqui há certa alegria quando chove. A chuva é o amor que o Sertão vive esperando.

Quarto de amanhecer. Em Casa do Abraço, Pasárgada

Para ver melhor a chuva, eu tirei as cortinas dos janelões de vidro da minha casa. E descobri que o pé de acerola pinta um quadro na sala. Da nascente biblioteca, sem o retalhar de persianas, vez em quando acompanho o voo dos pardais e a ciranda das borboletas amarelas. No meu quarto, experimento a alternância da madrugada com o nascer do sol. Na cozinha, o bouganville em flor, o segundo hóspede do quintal, e a viçosa bananeira formam o horizonte.

Em algumas manhãs, coloco um domingo na janela: ajeito ali um vaso de flores. E assim vou costurando o mundo lá de fora com o daqui de dentro.

Uma das primeiras coisas que faço quando acordo é abrir as janelas de casa e do olhar. E sempre que falo sobre janelas e essas pequenas felicidades à mostra, lembro o texto clássico da escritora carioca Cecília Meireles (1901-1964):

“A arte de ser feliz

Houve um tempo em que minha janela se abria sobre uma cidade que parecia ser feita de giz.  Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. 

Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde e, em silêncio, ia atirando com a mãos umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse.

E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.

Tenho, por hábito de infância, olhar o mundo através das brechas. Vez em quando, escapo entre elas e vou-me embora com um passarinho.

Às vezes, abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.

Outras vezes, encontro nuvens espessas.

Avisto crianças que vão para a escola.

Pardais que pulam pelo muro.

Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.

Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.

Maribondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.

Às vezes, um galo canta.

Às vezes, um avião passa.

Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo seu destino.

E eu me sinto completamente feliz. 

Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros, que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso olhar para poder vê-las assim.” 

(do livro Escolha seu Sonho, 1964)

(post publicado, originalmente, em 8 de janeiro de 2019. Reescrito em 8 de setembro de 2019)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *