Fragmentos de nós dois ] Outubros

Neste outubro, eu me despeço do presente na Redação do jornal O Povo, localizado na avenida Aguanambi, 282, em Fortaleza (Ceará). Trabalhei, como repórter, naquela casa (é assim que muitos, aqueles que fizeram morada, se referem ao jornal local mais antigo em circulação), durante quase 23 anos ininterruptos – ia inteirar os 23 no próximo dezembro.

Vivi as fases (lunares, eu diria!) da profissão, principalmente, ali: os medos e as coragens, as dúvidas e as buscas, os fins e os começos, as mudanças e as permanências, as desilusões e as resiliências. Conquistei a confiança no meu trabalho, a partir da minha fidelidade a uma prática jornalística ética e humana, técnica e sensível, firme e amorosa. Aprendi muito mais com cada profissional e com cada amigx que busquei ou que sentou ao meu lado. Vivi “emoções indeléveis”, como agradeci à dona do jornal antes de ir embora com o amor que eu amei inteiramente. “Sinto-me feliz em ir embora agradecida. Combati o bom combate, guardo a fé”.

Ao arrumar minhas coisas e meus sentimentos, para poder seguir adiante, tenho revisitado muitas fotografias e palavras que me acompanharam, jornalisticamente, nos últimos 23 anos. São reportagens e encontros quase esquecidos e que, de novo frente a frente, me fazem lembrar de mim. Do quanto eu caminhei, do tanto que me perdi e onde fui me buscar. Minhas entrelinhas ou linhas tortas. Meu escrever solitário, que ainda anda por dentro de mim.

Nesse entremeio entre o agora e o que será, eu permaneço em um canto do passado do jornal de 91 anos e que deseja o centenário. Gosto muito de usar palavra canto, especialmente, ampliada em verbo. Deixo, assim, ficar subtendidas todas as canções que cantei enquanto reportava, o jornalismo que também se fez cantar, e cantar, e cantar… E já encaro o passado com mais afirmação do que negação. Para mim, o passado é o único tempo que está a salvo. É necessário ir lá algumas vezes na vida – ou na história.

No mais recente passeio pelo tempo que faço neste outubro, e enquanto emendo uma pesquisa para um trabalho como freelancer, encontrei, no meu e-mail profissional, uma pauta de 2017 que desembocaria em janeiro de 2018, na publicação especial dos 90 anos do jornal O Povo. A editora, então, demandava: “A sua pauta é um ensaio sobre o jornalismo e como O POVO quase centenário se insere nesse universo. Vamos querer o seu texto, sua reflexão, seu repertório e, também, o seu lirismo. Obviamente que o jornalismo e a data pedem celebração. Mas vc tem liberdade de reflexão. Pode beber em outras fontes se sentir necessidade, ouvir, partilhar ideias, enfim, algo que seja definitivamente marcante”. Era mais ou menos assim.

Escrever esse tipo de coisa, definitiva, me custava o sono, a fome, todos os pensamentos e as experimentações de dizer. Inúmeras vezes, uma palavra ou a frase inteira nasciam quando eu abria o chuveiro ou quando eu sonhava. Passei a tomar banho, a almoçar/jantar e a dormir com papel e caneta por perto. Determinados textos foram, para mim, nascimentos. Outros ainda nascerão, eu acho.

Reproduzo, neste post, o texto que reencontrei, cravado na publicação de 90 anos do jornal O Povo. Originalmente escrito entre dezembro de 2017 e janeiro de 2018, ele continua fazendo pontes entre os tempos, para mim.

P.S. por falar em despedidas, tenho publicado, no Instagram @anadossuspiros, trechos de um texto que elaborei para abraçar companheirxs e amigxs da Redação do O Povo, enquanto vou embora daquele cotidiano. Não foi possível ler a derradeira “declaração de amor” para eles; houve uma série de desencontros, finalizada com uma tragédia local (o desabamento de um prédio de sete andares) que exigiu (e ainda exige) corpo e alma dos repórteres envolvidos na cobertura. Estou tentando aprender sobre podcast, para publicar o referido texto na “plataforma do momento”. Até lá, haverá novos trechos até o próximo dia 31, no Instagram. #ficaoconvite para uma visita!

Mil nascimentos para mil despedidas

Há muitas #despedidas em se nascer 90 vezes, assim na vida como no #jornalismo. E, na complexa verdade do #tempo, são as despedidas que nos deixam as #permanências, compondo o que somos, essencialmente. Em outras palavras: sob os escombros de despedidas, somos o que resgatamos – quando nascemos outra vez.

Esta imagem também espelha o jornalismo diante do tempo. Para os #nascimentos que demarcam a sua história – dos espaços públicos de Atenas Antiga à web deste século, dos tipos móveis de Gutenberg (década de 1440) aos caracteres atuais -, foram necessárias certas despedidas.

A opinião como notícia e o jornal como palanque, arroubos de uma primeira imprensa, vão se adequando aos gêneros jornalísticos e à #ética, em favor da #credibilidade. A curiosidade nata, que emendava #histórias populares e informações sem muito rigor, é burilada por técnicas de entrevista e de #apuração. Abrem-se #fazeres e espaço para o #aprofundamento; a #reportagem é o nosso rio.

Aos poucos, as redações se desfazem das máquinas de escrever e mesmo da poesia de uma época artesanal; de quando o jornalismo era feito à mão e à memória de reporteiros formados pelas crônicas, pelas ruas e pela boemia. Silencia-se o burburinho das palavras datilografadas, enquanto o pensamento passa a se manifestar no sem-fim #digital. Perdem-se escritores, ganham-se jornalistas diplomados.

Neste ir e vir, ampliam-se o #mundo e os assuntos, muda-se o estilo de dizer, somam-se meios de contar. O tempo acelera, enquanto é preciso se demorar na #humanidade. Mas o #olhar e o #sentir daqueles que se destinam a reportar permanecem e seguem transbordando limites. “O jornal é uma publicação da paróquia, porém do tamanho do mundo. Depende apenas do ponto de vista de quem lê e de quem o faz”, traçou o jornalista Demócrito Rocha Dummar (1945-2008), presidente do Grupo de Comunicação O Povo entre 1985 e 2008.

E nós, que ainda tecemos o jornalismo de cada manhã, nos perguntamos – aos 20, aos 40, aos 60 ou aos 90 anos – pelas múltiplas #verdades dos #fatos e pelas mil possibilidades das #pessoas. “A essência do repórter, o coração do repórter, a alma do repórter é fazer com que o mundo seja melhor”, extraiu o jornalista e professor Ronaldo Salgado, 61 anos, em entrevista ao O POVO (“O jornalismo quixotesco”. Páginas Azuis, 20/03/2017).

Neste sentido, investigamos tanto números quanto sentimentos, delações e silêncios. Investigamos, igualmente, sol e chuva e também nos importa a morte dos peixes, das dunas, das florestas; queremos o #voo dos pássaros. Precisamos, mais do que nunca, escrever para #significar. “Alguém pode dizer: as coisas mudaram. Sim. Mas a #essência do jornalismo não pode mudar… A gente não pode pensar em abrir mão dessa tentativa de #investigação, desse mergulho na realidade”, aponta Ronaldo Salgado. São as permanências em nossas despedidas.

O #encontro com o outro é o único sentido de todas as #conectividades estabelecidas ao longo da história humana (história que corre em paralelo com os caminhos da notícia). O dizer, com ou sem hastags, é outra permanência em nossas despedidas. “A potência do que o jornalismo pode fazer não se apaga por conta da derrocada de um modelo… É o #conteúdo que vai fazer a diferença. É um conteúdo rico, bem apurado, #honesto, #inovador também”, compreende a jornalista e professora Fabiana Moraes, 43 anos, em entrevista ao O POVO (“Jornalismo feito verbo”. Páginas Azuis, 31/7/2017).

No papel, no vídeo, na internet, nos smartphones ou apenas nos sons do rádio, que se reinventem muitos meios de transporte: é do jornalismo chegar a um tempo de tanto viver a vida dos outros que não se morre mais. O que acontece é que tem vezes de nos despedirmos um pouco de nós, para nascermos.

E aquilo que ainda se deseja aos 20, aos 40, aos 60 ou aos 90 anos é o que nos mantém vivos. Ao olharmos no espelho do tempo, que ainda seja possível ver o que sonhamos. “Agora estou trabalhando em cursos para o online, de educação à distância, tenho um blog, tô escrevendo livros… A mais-valia que a #experiência nos dá é muito grande. E vamos em frente”, reflete, aos 83 anos de idade e 60 de jornalismo, o pesquisador Manuel Carlos Chaparro, em entrevista ao O POVO (“Jornalismo sempre em transformação”. Páginas Azuis, 9/1/2017). Há quem conte o tempo pelo envelhecer: a cada ano, ficaríamos mais velhos. E existem os que percebem o tempo pela #resiliência: a cada ano, ficaríamos mais sábios. Acredito que a distância entre velhos e sábios esteja, justamente, em despedir-se de determinadas #realidades, para nascer em outras #utopias. E outras, e outras, e tantas. Seja aos 20, aos 40, aos 60 ou aos 90 anos. Até enquanto houver palavra, até enquanto houver sentimento. Até enquanto houver vida pra dizer, até enquanto houver mundo pra significar.”

tantas vezes, o texto que escrevi foi minha fome e meu alimento. Copa da Redação do jornal O Povo, em algum ano antes deste outubro

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