Quarentena 2] Palavras ao tempo-espelho

Amanhã, 20 de abril de 2020, a quarentena no Estado do Ceará, onde moro, completa, oficialmente, um mês. Dia a dia, o cotidiano dos lugares e das pessoas se transforma um pouco mais, para se adaptar ao isolamento social da urgente prevenção ao novo coronavírus. Quem pode, quem ama fica em casa; o movimento, nas ruas, diminuiu (embora nem de longe seja o cenário ideal, projetado por especialistas); a maioria dos comércios e dos serviços não essenciais está suspensa (mas existem aqueles que desconsideram o tamanho do problema – mundial – e as orientações oficiais). Além do vírus desleal, luta contra o egoísmo também é diária.

Por estes dias, escrevi, em uma crônica-reportagem que será veiculada na Rádio Universitária FM (Universidade Federal do Ceará), que o tempo parou. De certa forma, para boa parte das pessoas (as exceções são os profissionais na chamada “linha de frente do combate ao novo coronavírus” e os prestadores de serviços essenciais), as horas desaceleraram. E, para quem sempre desejou um tempo de sobra, “mais cinco minutinhos”, existe agora uma chance de ser donas e donos do próprio tempo.

Mas o que fazer com o tempo que temos agora é uma pergunta ancestral e existencial. Significa que ainda não foi respondida, nem será – pelo menos, não completamente e, muito menos, de maneira universal. Talvez, por isso, seja inevitável viver um dia de cada vez – e viver, assim, a vida que nos cabe (não a vida alheia – rs). Quem sabe, este não seja o grande aprendizado de uma vida inteira?

Nesse sentido, há outra questão – eis a questão! – que a pandemia do novo coronavírus impõe: é um tempo (a mais, ou inédito) que precisamos viver, principalmente, conosco.
É um tempo-espelho, eu acho: vamos encarar? Nossas marcas, nossas imagens invertidas, nosso envelhecer? Vamos descobrir? Nossas belezas, nossas singularidades, nossas mudanças?

É, antes de voltar ao mundo – ou, justamente, para voltar ao mundo -, um tempo de (se) ver.

Da casa que também sou, eu tenho visto, mais ou menos, assim: 

(o longo caminho)
“Desde há semanas que parece o entardecer, parece cair a noite. Densas trevas cobriram as nossas praças, ruas e cidades; apoderaram-se das nossas vidas, enchendo tudo dum silêncio ensurdecedor e um vazio desolador, que paralisa tudo à sua passagem: pressente-se no ar, nota-se nos gestos, dizem-no os olhares. Revemo-nos temerosos e perdidos. À semelhança dos discípulos do Evangelho, fomos surpreendidos por uma tempestade inesperada e furibunda. Demo-nos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados mas ao mesmo tempo importantes e necessários: todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo encorajamento. E, neste barco, estamos todos. Tal como os discípulos que, falando a uma só voz, dizem angustiados «vamos perecer», assim também nós nos apercebemos de que não podemos continuar a estrada cada qual por conta própria, mas só o conseguiremos juntos.” (Papa Francisco, durante a benção urbi et orbi. 27.03.2020).
(a lição da natureza)
por estes dias, escrevi a um amigo que não se dá a chance de entristecer: somos fortes e frágeis ao mesmo tempo. e só conseguimos nos manter de pé, para a travessia de cada dia, se equilibramos as cargas que nos compõem. hoje, confesso, perdi a vontade de escrever porque escrever tem sido em vão. cada vez mais, tenho pensado em trocar as palavras por fermentos, farinhas, grãos… mas, então, o pensamento cruzou com uma pequena e resistente flor sob a chuva, cumprindo o destino de ser flor. achei isso um ensinamento, não é?
(acervo)
entre um tempo e outro,
guardo chuvas
e nascimentos.
(cotidiano-postal)
(amanheceres)
por estes tempos, escrevi a um amigo e a uma amiga sobre se cuidar com amor (próprio). que este momento de isolamento social necessário se torne instantes de encontro conosco. como quando aqueles barcos de passeio param longe da costa, para que possamos dar um mergulho. há horas, na vida, de irmos até nossas profundezas, para nos resgatar. e eu acho que o amor (próprio) nos dá fôlego para esse mergulho. tenho experimentado assim e compartilho o bem que me faço também por aqui; espero, sinceramente, que tenha utilidade para outro alguém. sei como é importante tecer uma rede de inspirações. eu me inspiro em muita gente, sou uma composição de bem-querer kkkkkk! em resumo, eu me amo e, assim, eu me salvo. bom, mas o que eu queria escrever mesmo era essa receitinha de suco rico em vitamina C. #bora fazer? #bora se amar também?
receitinha:
1 laranja
1 limão
1 manga (a da foto é assim: minha mãe tira a polpa e congela)
morangossssssss (se for a fruta in natura, uns dez, dependendo do tamanho. eu uso uma polpa orgânica)
melado de cana ou mel (para adoçar, se puder/quiser, mas não exagere na dose)
200 ml de água de coco (ou normal mesmo. eu é que gosto de fazer suco com água de coco)
1 folha de couve (não está na foto, mas está no copo do liquidificador!)
Bate tudo e não coa (já dizia minha nutri do coração, Ana Coeli Guimarães).
(cotidiano-postal)
(cotidiano-postal)
(Domingo, 5/4/2020)
já me contaram muita coisa sobre Deus, desde que eu era criança. nasci em uma família de herança católica, estudei em colégio de freiras. faria esse percurso outra vez, com outros olhares, porque ele também é bonito e tem seus valores, principalmente, quando aproxima céu e terra. no caminho da fé, cruzei algumas fronteiras: as crenças são maiores do que as religiões e me faz melhor acreditar em todo o Bem (assim, maiúsculo). mas, como eu ia escrevendo, já me contaram de um Deus punitivo, que me assustou: um Deus-Espírito, essência da sabedoria que goteja em mim; um Deus-pai, com quem me relaciono no cotidiano; um Deus-amor, que não sei dizer, só sei sentir; um Deus-Cristo, tão humano quanto eu e, por isso, também irmão. pelos dias de realidade inclemente, vejo que Deus é o próximo que dói e o próximo que ama. é tão humano, que carrega uma cruz, tem medo e chora. tão humano, que sente a solidão e a sede. tão humano, que é capaz de entregar a própria vida por amor a alguém – a todo e qualquer alguém. eu vejo Deus assim: em quem pesquisa a cura, em quem cuida da dor, em quem alimenta, em quem acalma, no papa que sofre, na santa que é doçura para os pobres, no olhar pedinte, em quem resgata. fiquem com Deus, por onde forem, amigxs.
paz e bem,
abraços daqui.
(a lição da natureza)
coragem é o medo que ousou voar.
(querida amiga,)
por estes dias, lhe escrevo: é mesmo, humanamente, difícil abraçar a dor (que os cristãos também chamam de cruz, pela tradicional e imensa simbologia). sei o quanto evitamos olhar para o(s) crucificado(s), ver as chagas abertas, o coração ferido, ver a fragilidade e o medo no outro (que também somos). preferimos o ressuscitado, aquele que venceu a morte. mas como vencer a morte sem morrer um pouco? não sei, não me contaram. o que já sei é que feridas se curam, e as marcas nos lembram as curas. e agora aprendo – porque também já experimentei as perdas, e os desamores, e o desacreditar; e os ganhos, e os amores, e o acreditar, nesta desordem e ordem -, sim, agora aprendo que é preciso atravessar calvários (desculpe-me, querida amiga, sei que você também evita essa palavra, como se ela não existisse) para ir além, a um infinito. agora acredito, porque experimento, que as dores não são o fim, o ponto de chegada. não existe rio com uma única margem, é da natureza, entende? na margem de lá, está o resto do caminho. mas eu também entendo que você queira se desviar da cruz: eu também queria. não sabemos sequer amar, que dirá doer. no entanto, seremos o que amamos e o que sofremos. seremos o além disso tudo. o ressurgir.
que essas palavras lhe abriguem, da mesma forma onde busco refúgio.
paz e bem,
saudades e
abraços daqui,
(amanhecer é mais uma chance)
costumo ir ao jardim procurar paisagens e palavras. é do meu ofício de escrever, eu faço mais ou menos assim. a natureza – das plantas, dos bichos, da humanidade, do tempo – é a minha alfabetização cotidiana; minha cartilha do instante e meu livro de sempre. hoje, quando os cristãos celebram o Domingo da Ressurreição, um marco para a fé na vida, eu fui ao jardim buscar o céu. desde criança, me ensinaram a fazer essa busca. particularmente, também a considero importante enquanto caminho pelo envelhecer sem perder a ternura. então, hoje, imaginei encontrar um sol, simbolicamente, radiante, e uma terra iluminada, para escrever sobre renascimento. mas a primeira paisagem que vi foi uma pequena borboleta pousada na flor. e ela se demorou ali o tanto de dizer:
agora sei das minhas asas. a natureza – das plantas, dos bichos, da humanidade, do tempo – me ensina nesta manhã de domingo: transformar-se é preciso e é o milagre de cada dia, o extraordinário da vida. é nascer outra vez.
Feliz Páscoa,
Feliz ressurreição,
Felizes renascimentos,
caras leitoras e caros leitores do blog Ana dos Suspiros!
Paz e bem,
Abraços daqui,
(cotidiano-postal)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *