Saudade textual ] Grandes Sertões (1)

Eu costumo dizer que é preciso se distanciar, para ver o tamanho do mar. Quando eu trabalhava na Redação do jornal O Povo (entre dezembro de 1996 e setembro-outubro de 2019), não tinha muita noção do que eu fazia. Quero dizer, não tinha muita noção sobre a permanência daquilo que eu fazia – em mim e em quem fosse leitora/leitor. Nem eu, nem grandes nomes do jornalismo com quem tive o privilégio de trabalhar. Tantas vezes, depois da exaustão física e emocional de uma reportagem e ainda em meio ao parto natural de um texto, nós nos perguntávamos, lá na bancada dos repórteres especiais: escrevemos, a que(m) será que se destina?

(P.S. Tem muita coisa bonita em uma redação de jornal – apesar de. Essa pergunta, quase canção, é uma delas).

Escrever é mais ou menos assim, quando, ilhados, nós lançamos palavras na imensidão. Não é possível sabermos onde elas vão aportar. Mas o desejo de que cheguem até alguém, até um lugar ou um tempo e, mais do que isso, que abracem alguém, um lugar ou um tempo é a ilusão que nos faz escrever. Escrever e mudar as coisas nos interessa mais, eu também diria.

Na distância de hoje, eu olho o tamanho do mar. Faz algum tempo, desde que fui me despedindo (da Redação, do jornal, dos amores que foram amados), ando por onde já andei, para me reencontrar. Sigo as pegadas que marquei, mais profundamente, na areia do tempo, à beira-mar que margeia a vida. Hoje, as ondas em que mergulhei me trouxeram de volta o texto de uma reportagem muito significativa para mim.

caminhos da reportagem, setembro de 2019.

Foi a última reportagem que fiz, para o jornal O Povo. Um projeto que, eu acredito, fechou, de forma maravilhosa (no sentido místico do termo), o meu ciclo naquela Redação.

A série completa está sendo realizada há sete, oito anos e se chama “Santificados”. Em linhas gerais, o projeto – que envolve o jornal impresso e os meios audiovisuais e online – se traduz na busca e no mapeamento da fé popular, pelos Sertões, materializada em altares nas estradas e nas matas, para o povo que o próprio povo santificou. Uma fé que não foi validada pela Igreja Católica, mas, sim, comprovada na misericórdia do ser humano por outro ser humano.

Meu último trabalho no jornal O Povo foi a produção de quatro histórias, para essa série: o “homem do saco”, o “leproso milagroso”, o “enterrado vivo” e a “beata que vê Nossa Senhora”. A pauta começava assim, geralmente, de alguém que ouviu falar ou que anotou alguma pista.

E foi um dos trabalhos mais marcantes, para mim, justamente, porque eu me despedia de tudo aquilo (pelo menos, naquele momento, daquela forma). Cada cidadezinha, cada estradinha de terra, cada encontro com um pedaço do sertão era um adeus (e eu sabia). Ao mesmo tempo, eu atravessava o fim de muitas outras coisas que tinham sido importantes e até fundamentais na vida pessoal. Deixei boa parte de mim naquelas noites mal dormidas, de chorar até secar, em pousadas baratas, longe de tudo.

Mas, fazendo o percurso de volta, nestes dias de arrumar casa e alma, eu reencontrei um dos textos da reportagem e também os recados que eu deixava para minha editora. E foi bom, esse reencontro. Já não dói mais; é, agora, o que eu chamo de “saudade textual”. Um lugar de passeio, assim, de onde eu posso avistar o tamanho do mar.

Escolhi os textos sobre a história do “enterrado vivo”, para abrir este espaço nas memórias da minha carreira. Reli o texto principal, há pouco, e revivi cada lugar dessa busca e dessa escrita. Foi uma história muito, muito difícil de encontrar e que começou por um “eu ouvi dizer que tinha…”. Era a anotação de um amigo, dos Especiais, guardada desde as primeiras reportagens da série “Santificados” – há sete, oito anos.

vez em quando, aparecia um vivente.

Lembro-me bem do dia quase inteiro, desde as primeiras horas da manhã, entrando e saindo da Doblô do jornal, perguntando a Deus e ao mundo se alguém sabia do acontecido perdido no tempo. Pra cima e pra baixo, curva depois de curva, um buraco atrás do outro e o poeiral no meio do nada – do absolutamente nada. E lembro a reza que eu fiz, pro próprio “enterrado vivo”, quando o motorista e o fotógrafo, a tarde tinindo, começaram a falar que era caso sem jeito, perdeu-se no oco desses cafundós, quem sabia já morreu também, “vamossimbora”.

E eu na prece pro santificado, “valei-me, que eu mando rezar missa”.

Quando-a-fé, um menino cruzou a desistência, feito anjo, na BR. Eu disse, “bora perguntar pra esse menino, uma última tentativa”. E o milagre, eu conto no texto.

Um texto, a propósito, que também é especial para mim. Demorei dois, três dias (e sem poder demorar, com o deadline no pescoço), para parir a história. Não nascia nem pelo-amor-de-Deus. Não vinha uma frase sequer. Escrevi a entrevista e as outras informações para a página, uma espécie de moldura da história central, mas o texto principal não se dizia.

Até que numa madrugada, de três horas até o amanhecer, o texto nasceu. Do jeito dele. Veio parecido com um cordel, que é um meio próprio do povo de cá contar os extraordinários da vida. Escrevi duma vez, feito nascimento mesmo, ou foi o divino, a quem sempre me apego nas faltas.

Olhando daqui, foi uma coisa bonita que eu fiz no jornalismo (ou que eu e o jornalismo fizemos juntos), eu acho. Não sei onde tudo isso aportou, na imensidão, mas, hoje, eu tomei banho nesse mar. E essas águas salgadas ficaram em mim outra vez. Continuo sem saber a que(m) será que se destina o escrever. Só sei que, por estes dias de isolamento, tudo isso me encontrou.

(P.S. Reproduzo o material final, como enviei – por e-mail – para a minha editora, na época; os itálicos são recados e sugestões que eu dava a ela. É um modo de mostrar como pensamos e montamos a reportagem)

a capela que o povo fez, no lugar do infortúnio, e a bicicleta do menino aparecido na BR, que nos guiou até lá.

Enterrado vivo. * a palavra pode ser “AGONIA”

Cariré/Juré.

Fotos: Fábio Lima. Feitas dia 6/9

(para o Impresso)

Título: O inocente enterrado vivo

ABRE

José Francisco, “um nome nunca esquecido” – como pintaram na placa que indica a morte em 27/03/1901 -, foi enterrado vivo. Era a sentença por um “crime de honra”, que não cometeu. Depois da inocência descoberta, o povo santificou Zé Francisco. Esta história é emendada por um e outro mais antigo, nas entocas do Juré, depois de Reriutaba (a 285,7 quilômetros de Fortaleza)

Ana Mary C. Cavalcante

anamary@opovo.com.br

TEXTO

Esta é uma história muito difícil de contar, tanto pela procura quanto pelo penar. Há sete anos, em outra entrevista, passando a fé em revista, um colega anotou: houve um acontecido, no meio do mato perdido, de um homem que a própria sepultura cavou. Foi enterrado vivo, sem chance de perdão; agonizou dia e noite, aquele pobre cidadão. Dizem que a morte matada se deu numa emboscada, por uma mentira criada, nos cafundós do Juré, que tanto é rio como é arruado, pras bandas do Cariré.

Entre lonjuras, a reportagem andou; cruzou Reriutaba, se perdeu e se achou. Perguntou no posto de gasolina, no mercado e na oficina se alguém tinha ouvido falar, alguma vez, daquela sina. Ninguém sabia de nada, “mas meu camarada, pergunte ali mais na frente, aquela senhora de branco parece que é uma crente”. De fato, era gente de igreja, mas não era na cidade que ia findar nossa peleja. A senhora de branco, com o terço na mão, indicou que a reportagem fosse do lado de lá do sertão.

De tanto ir e voltar, sem palavra certa encontrar, se aproximava a hora de desistir. Mas quem vai no rumo da fé atravessa o desconhecido e a incerteza, vence o cansaço e realiza a proeza; o único caminho é persistir. No nada do fim do mundo, surgiu, então, um bar e, naquele segundo, teve um para apontar: “Eu já ouvi essa história, procure, por acolá, os mais velhos do lugar devem ter guardado na memória”.

Avançamos pela estradinha de terra, a esperança renovada, que alguma chegada vem depois de toda revoada. O sol já escaldando, na poeira restava uma casa, um cachorro e um jumento, ainda tinha um alento, era o sítio de seu Gonzaga Fernando: “Por aqui houve o acontecido de um inocente ter morrido. Era rapaz novo, morou vizinho do sítio que meu pai me deu, onde tem aqueles paus, mas todo mundo que sabia dele já morreu”.

Voltar só com a morte escrita, essa tamanha desdita, depois de tanto querer a vida, não é cartilha sertaneja e, por mais improvável que seja, vamos saber daquele menino que cruza a estrada: “Garoto, faça uma caridade, diga se é mentira ou verdade, se existiu mesmo tal morte matada?”. O menino respondeu pela boca de um anjo: “Pois essa história, eu já arranjo, é lá na minha casa. Cês tão bem pertim, é só seguir esse camim”. Foi quando a reportagem criou asa.

detalhe do interior da capela, com o que se sabe do santificado enterrado vivo

E na Várzea da Cacimba, naquele alto mais em cima, muito foi esclarecido. Chamaram Pedro Ferreira, velho agricultor, que de uma queda foi valido pelo morto sofredor. Há uns anos, ele prometeu oração ao santo popular, se tivesse uma compensação e voltasse a andar.

Hoje, seu Pedro caminha até a capela, onde a cova do santificado Zé Francisco permanece, e o fiel ainda se enternece com tamanha expiação. É muita maldade, imagina, o que fizeram com aquele pobre cristão. Passou dias para morrer, pedindo água debaixo do chão, vivo ainda estava, assim o agricultor ouviu dizer e conta com precisão.

Em 1901, quando aquilo era deserto, o crime se sucedeu tendo o silêncio por perto. Feito Cristo carregou a cruz, Zé Francisco percorreu seu calvário, inocente, coitado, carregando uma pá para ser sacrificado. Seu Pedro conta melhor a crueldade e a agonia, que mais pungente do que poesia é a prosa que o sertanejo recria:

“A história que eu ouvi falar, quando cheguei aqui, que este rapaz, culparam ele, com um negócio com uma moça que tinha. Ele era criado da casa. A moça saiu grávida. No caso, era de outro namorado dela. O caba ensinou cuma era que ela fizesse, aí, saiu fora. Quando deram fé, ela culpou o rapaz, aí, foi a tragédia que se deu.

Era (filha) de gente pobre mesmo. Tinha recurso, mas era pouco. Aí, foi o pai dela e um filho, irmão dela, foro culpado, tivero preso em Sobral, passaro mais de 30 ano, quando foro solto, passaro muito pouco tempo, morrero.

Bom, levaro ele, ele mesmo cavou a cova. Depois que ele abriu a sepultura, disseram, cê tá sabendo pra que é isso aí? Ele disse, não, não tô sabendo, tô inocente. Aí, pegaro ele, com licença da palavra, derrubaro ele, caparo e botaro dentro da cova, vivo. O que eu sei é só inté aí…

A igrejinha é mermo no lugar da cova. E é milagrosa, tem dia que é um estrelado de fogos medonho. Festejo mais é agora, mês de setembro, outubro, novembro, inté o final do ano. Dia de Finado, é certo”.

seu Pedro, agricultor e devoto, a memória viva que ainda conta a história

Essa é a história encontrada, entre graças alcançadas e no mato entranhada. Não há muito além da capela, das promessas pagas e de um par de chinela – que sempre alguém deixa ao lado do túmulo, igual no dia do infortúnio, para o pobre engrandecer: além da roupa do corpo, era o pertence do Zé, na hora dele morrer.

E, nas questões da fé, o pouco que se sabe é o muito em que se acredita. O certo é que, de um miserável, se faz uma alma bendita. Nesse mistério não cabe razão, resposta, explicação. Basta a expiação e a misericórdia, a cura alcançada, a morte desfeita, enfim, o mal sanado, para o vivente pecador ser o morto santificado.

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ELEMENTO PARA A PÁGINA (“bate-pronto”/entrevista com o historiador Régis Lopes, professor do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará)

Fátima, você pode deixar a primeira e a segunda perguntas. É uma sugestão. Ou pode escolher o que quiser. E colocar a íntegra no Online.

Se tiver título, uma sugestão: Zé do Brasil

O destino de Zé Francisco, enterrado vivo para salvação da honra alheia, também compõe a história do Brasil. “O caso combina com o costume da punição exemplar, ligada à definição de papéis masculinos e femininos”, observa o historiador Régis Lopes, professor do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará. “Tem relação com a violência típica da colonização no Brasil e não apenas no Nordeste ou no sertão. Violência em nome da honra era comum. Dizia -se que um homem briga por três ‘coisas’: terra, dinheiro e mulher”, completa. Nesta entrevista, via WhatsApp, ele abre veredas por este passado não tão distante:

O POVO – O fato, descrito pela memória popular e repassado de geração a geração, aconteceu em 1901. Se o senhor pudesse ser espectador desta época, voltando aos sertões cearenses do início do século XX, o que mais lhe chamaria a atenção nesta história (a violência extremada, a culpa inventada, a justiça com as próprias mãos, a canonização popular…)? Que aspectos o senhor destacaria?

Régis Lopes – O erro no julgamento. Veja: a culpa não foi inventada. O problema é que a condenação foi apressada. O julgamento foi errado. Por isso a tradição popular e bíblica diz que quem julga é Deus. Quando o julgamento vem dos homens, tudo pode dar muito errado.

OP – E o que esse acontecimento reflete sobre a história local, sobre a formação do lugar e da sociedade?

Régis – Totalmente. Uma sociedade machista e sem o cultivo da racionalidade, dominada por valores religiosos e pela tradição oral. É a história tal como aconteceu na colonização do Brasil, não apenas no sertão, mas em todo Brasil, inclusive nos centros urbanos, onde a violência não foi menor. O evento é típico de sociedades tradicionais. Sociedades que não cultivam a racionalidade e ficam dominadas pela tradição de fazer justiça com as próprias mãos.

OP – O senhor vê pontes entre essa cultura “de antigamente” e os tempos atuais (seja pela barbárie ou pela fé popular)?

Régis – A violência continua. A diferença é que agora entram dois fenômenos que não existiam: o tráfico de drogas e a teologia da prosperidade.

OP – E sobre a religiosidade/fé na composição do povo cearense?

Régis – Não há uma característica peculiar da religiosidade no Ceará. É tudo muito misturado. Por exemplo: os romeiros de Juazeiro, a maioria vem de fora. Em relação ao caso específico, a crueldade das elites. O Ceará tem a elite católica mais cruel do Brasil. Veja: o dono de um sítio. Quem manda matar é sempre dono de alguma coisa. Sempre. Em todas as histórias de crueldade, o cruel é o proprietário. Sempre. Isso é impressionante. Essa história particular mostra isso: mata quem pode matar. Sem ver isso, o caso vira apenas uma curiosidade folclórica. O caso, na verdade, mostra uma estrutura que se repete muito. O potentado manda matar e nada acontece. A justiça fecha os olhos. Aí, a devoção popular denuncia: ele matou um inocente. Aí, o inocente é transformado em Santo. Isso é uma forma de fazer justiça. O modelo é a morte de Cristo: anúncio do milagre é denúncia do crime.

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(para o Online)

PEQUENA BIOGRAFIA

José Francisco, “um nome nunca esquecido” – como pintaram na placa que indica a morte em 27/03/1901 -, era criado da casa. Quando a filha solteira do dono do sítio contou que estava grávida, disse também que o pai da criança era Zé Francisco, da maneira que lhe orientou o namorado covarde. O namorado sumiu no mundo. Zé foi julgado e condenado segundo a lei de quem manda. O pai e o irmão da moça fizeram o criado cavar uma sepultura, no meio do mato, “caparam” o rapaz e o enterraram vivo. Ficou só o par de chinelas de Zé Francisco do lado de fora da cova. Depois que a criança nasceu, descobriu-se a mentira; e o povo canonizou Zé Francisco, o inocente enterrado vivo. Esta história é emendada por um e outro mais antigo, nas entocas do Juré, depois de Reriutaba (a 285,7 quilômetros de Fortaleza).

*ATENÇÃO: NÃO TEM ORAÇÃO ESPECÍFICA PARA ELE. Há quem reze o terço, há quem reze um Pai-Nosso e uma Ave-Maria.

SUGESTÕES DE LEGENDAS PARA A GALERIA DE IMAGENS (podem ser gerais, tirei do próprio texto principal)

um par de chinelas é a lembrança dos pertences do morto

Quem conta a história sabe apenas que o santificado se chamava José Francisco e que a morte, depois de alguns dias de agonia, se deu em 1901. Tratava-se de um jovem, que trabalhava em um sítio local. Igual a tantos outros daquele sertão do Brasil.

Um dia, a filha do patrão de Zé Francisco pegou barriga, assim contam. O namorado dela lhe orientou que “culpasse” o criado pela “desonra”, que ele mesmo não ia assumir a criança. Fugiu, ninguém sabe e ninguém viu mais.

Zé Francisco foi apontado como o pai que ficou. Julgado e condenado ali mesmo e às pressas, ele cavou uma sepultura, no meio da mata escondida, onde foi enterrado vivo, sob as ordens do pai e do irmão da moça.

Depois que a criança nasceu, a verdade foi revelada, e os assassinos de Zé Francisco foram presos em Sobral (Região Norte do Estado), relatam os antigos. Mas ninguém da região soube dizer quais eram as famílias dos justiceiros ou do falecido, se ainda havia algum remanescente. Por ali, só sabem mesmo que o inocente, enterrado vivo, é um santo.

Onde Zé Francisco cavou a própria sepultura, em 1901, os devotos fizeram uma capela e um caminho de peregrinação. Velas, fotografias, imagens de santos, coroas de flores, ex-votos, garrafas d´água (acredita-se que uma das agonias do santificado foi a sede que passou debaixo da terra) são deixados ali pelos pagadores de promessas. Um dos objetos mais simbólicos, que está junto ao túmulo e é trocado sempre que o tempo desgasta, é um par de chinelas – uma derradeira lembrança do pobre morto.

por onde andei, agradeço aos caminhos.

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