Quarentena, poeminha do caminho ] Canto de passarinho

escrever é inútil,

a palavra tem sido em vão.

aos utópicos, a realidade ensina

esta primeira lição:

no meio da desgraça,

não adianta escrever salvação,

outros textos,

um mundo paralelo…

ninguém lê, dá atenção.

frente ao desamor,

é inútil dizer recomeços,

é tolice contar sobre flor.

tempo da desilusão.

escrever é inútil,

a palavra tem sido em vão.

e escrever para ninguém

amplia a solidão.

por estes dias, toda agonia,

uma amiga perdeu a mãe,

outra perdeu o irmão,

e não houve palavra

que lhes refizesse o chão.

a dor é deserto quente

e não há explicação que alente

o padecer do coração.

escrever é inútil,

a palavra tem sido em vão.

a morte de milhares de gentes

passa todo dia na televisão.

todo mundo vê,

mas finge que não.

quem mandou matar

vai ser sempre interrogação?

tanta mente em desassossego,

mas dizer já não alcança:

a palavra tem sido em vão

se acabou a esperança.

tempo de precisão.

melhor ficar em silêncio,

ser cúmplice da negação?

fazer de conta que a vida segue,

na sorte de escapar,

enquanto os outros morrerão?

escrever é inútil,

a palavra tem sido em vão.

ainda assim, na praça vazia, 

o papa faz uma oração

e comove pela insistência,

entre a fé e a ciência, 

de que dias melhores virão.

o belo atravessa o nada;

na varanda, chega uma canção;

o cuidar vence a desdita

e, de novo, a vida bendita

tenta a superação.

no país do cala a boca,

a palavra tem sido em vão.

(mas já não é possível calar,

“até as pedras falarão”)

então, mais alto o poeta grita:

“eles passarão”.

As fotografias, quase pinturas, que voam pelas linhas deste poeminha do caminho, são do acervo do jornalista e escritor Demitri Túlio – a quem eu chamo de “meu amigo passarim”. Durante muitos anos e editorias, trabalhamos juntos na Redação do jornal O Povo (Fortaleza-CE). E, de tanto ele se embrenhar pela “Floresta do Cocó” – como ele mesmo inventou para a metrópole, a partir de um parque estadual localizado na área nobre da Cidade -, guardião dos ninhos, das águas dos rios e da chuva, dos bichos e das plantas que ninguém vê, Demitri tem se tornado uma espécie de árvore, de trilha, de mané-magro, de canto de passarinho. É um desses seres encantados, a mudar a cor do mundo.

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