Quarentena, o apurado do tempo] Pequena lição do agora

Faz alguns dias, encontrei uma borboleta sem céu no jardim. Era manhãzinha, e um vento suave soprava os pelos finos das asas da linda borboleta morta, insistindo no reviver. Havia uma história ali, um lembrar, entre o vento e as asas, mas, na pressa de costume, eu adiei ver.

lá está o vento soprando as asas.

Acontece que a imagem não saía do meu pensamento. Vez ou outra, lá estava o vento soprando as asas. Assim, por estes dias, depois de escrever a uma amiga e a um amigo minha escolha pela vida, voltei a pensar naquela borboleta morta.

É que meus amigos também estão perdendo o céu, desacreditaram de tudo o que lhes fazia voar; e já não se alimentam mais do que floresce. Choram dentro de si, engolem dores, calam o sentir, evitam os encontros com as pessoas e as palavras. Mal-dizem. Eles ligaram o piloto automático, para atravessar tudo, do trabalho ao casamento, e vão desconhecendo, pouco a pouco, a força das asas; mais, vão desaprendendo a trajetória das asas. Não encontram mais a saída, que sempre será pelo acreditar

É a doença, é a miséria, é a desumanidade. É a falta de dinheiro, e de perspectiva, e de justiça. É a idade.

São os mil mortos sem fôlego, sem chance e sem despedida, a morrerem de novo em mil indiferenças. É a coragem ausente, é o sonho que não há mais. É o se perder, sem saber por onde começar a se procurar.

Sim, meus amores, tiraram boa parte de nós. Roubaram alegrias, e a tristeza se encarrega de raspar até o fundo da alma.

Mas, e sobre os filhos paridos e criados? E sobre a morada construída e o mundo desbravado? E sobre o que vencemos quando nem sabíamos como venceríamos, o leão de cada dia? E sobre os abismos que ultrapassamos ao descobrir nossas asas?

Meus amores, por estes dias, eu escrevo a cada um de vocês: aquilo que vivemos, inteiramente, ninguém pode tirar de nós. Agora consigo ler o dizer daquela manhãzinha, deixado nas asas da borboleta sem céu: o vento é a memória do voo. 

Meus amores, a vida – vivida e por viver – é o que nos resta. E não é pouco; um grama de ouro sempre será ouro.

Quando tudo isso passar, já será junho em diante, e o ano, urgentemente, começará. Vida que segue, novas velhas rotas, outros olhares para as mesmas coisas que já não são mais as mesmas. Libertos outra vez, seremos capazes de sentir o mais suave dos ventos a reviver nossas asas

Acreditem.

Meus amores, o agora é ensinamento puro a nos conduzir: é imperativo, também para nós, começar com a metade que temos. E fazer dela, novamente, a parte inteira de nós.

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