Crônica] Olha pro céu, meu amor

Por estes dias de junho, o jornalista Demitri Túlio, meu amigo passarim, irmão camarada, me perguntou se eu escreveria um texto para O Povo+ sobre “um ano sem São João”. O Povo+ se anuncia como “a primeira plataforma multimídia da América Latina” – e, além, é uma união de forças, talentos e ideias no exercício sério, ético e belo do jornalismo. Ou ainda é a experiência das coisas simples na busca por outros modos de narrar, apresentou-me Demitri.

Meu texto seria livre e acompanharia uma reportagem sobre a falta das festas juninas, causada pela pandemia de Covid-19 – que já matou quase seis mil pessoas, no Ceará (estado brasileiro onde moro), enquanto termino esta frase. Uma “ausência estranhíssima”, me descreveu o Demitri, para quem ama São João. Só entende quem sente saudades.

Escrevi, então, a crônica “Olha pro céu, meu amor”, publicada, originalmente, na plataforma O Povo+. E que guardo, hoje, Dia de São Pedro, no blog Ana dos Suspiros. Antes que este junho acabe, eu queria compartilhar os sentimentos dessa crônica com vocês.

“Eu escolheria nascer no Nordeste e, todas as vezes, ter essa mãe semiárida”, respondi aos meus amigos do O Povo+ sobre a crônica entre desalentos. O texto, livre, “também escreve a esperança e a resiliência. Tem frases em marchas contrárias lá. Estamos transpassados pela pandemia, pelas perdas físicas e emocionais, mas temos escolhido a vida. E a vida é o céu para onde eu olho a qualquer tempo”. Por isso, este título: “Olha pro céu, meu amor”.

Eis a crônica, com os dados atualizados da pandemia, até esta publicação:

(herança)
minha mãe tirou os junhos guardados das caixas de lembranças e acendeu a noite do dia 24. neste período de isolamento social, minha mãe, eu e minha irmã imaginamos um São João entre a garagem e o jardim de casa.

Por estes dias, uma companheira de palavras me revelou que não conseguia mais dizer. “Emudeci”, ela me escreveu diante de tantos vazios. Já são mais de 5 mil pessoas mortas pelo novo coronavírus, no Ceará; outras 57 mil, no Brasil; e além de 500 mil no mundo.

A festa acabou,

O povo sumiu,

A noite esfriou.

Quer ir para a praia, praia não há mais.

A vacina ainda não veio.

E tudo fugiu,

E tudo mofou.

Com o coração na mão, quer entregá-lo a alguém.

Já não há mais….

E agora, josés; e agora, marias?

Estranho protocolar as ausências, mensurar os sentimentos. E é preciso dizer de alguma forma, para não implodir por dentro. Se você gritasse… Mas você é canto (de passarim). Então, neste junho sem fogueira, sem Joaquim com Zabé, Luiz com Yaiá, Janjão com Raqué, na distância de tudo, naquele vão da sala de estar, junto com as memórias do caminho, essa minha companheira de palavras colocou um Cariri. Fitas em maneira de arco-íris, parecido quando Barbalha enfeita a Igreja Matriz; o artesanato do Crato em cima dos livros; a fé de Juazeiro pousando na parede. E aconteceu uma multidão, outra vez, carregando o Pau da Bandeira, na fotografia em preto e branco de Zé Rosa.

O espírito junino sempre vai haver, no Nordeste-resistência, porque ainda há o sonho, esse tempo da manufatura. Faça sol, ou faça chuva; por aqui, de pequeno, se aprende a semeadura.

Pois, querida companheira, neste silêncio (necessário, talvez, para encontrarmos as palavras perdidas), ontem eu sonhei que estava no sítio Casarão, da minha infância, dançando com meu benzinho numa sala de reboco. “No resfulego da sanfona, inté que o sol raiar”. As tias e os tios remoçados, os males anulados, ninguém mais no grupo de risco, até quem partiu tinha voltado. “Ai, meu Deus, se eu pudesse acabar a separação”.

Noite de chuva na madrugada, um sonho emendou no outro, e o arrasta-pé se espraiou pelo meio da rua Júlio César, que era feliz se o canal do Jardim América não transbordava, onde meu primeiro amor me coroou “rainha do milho”. Então, havia

“Meninos brincando de roda,

velhos soltando balão,

moços em volta à fogueira,

brincando com o coração

Eita, São João dos meus sonhos”…

Meus amores já vão longe, é verdade, mas não perco o amor de vista. O horizonte é mais à frente e, quem sabe, nós nos encontraremos ali. Sigo, atravessando mares.

Mas, acredita, companheira, de tanto sonhar, eu acordei com o cheiro do bolo de milho da minha mãe: “É pra Santo Antônio”, ela me disse, ofertando o que lhe ofertou minha avó, e a mãe da minha avó, e a avó da minha avó…

Dia 24 de junho, minha mãe já separou a receita, tem o bolo de São João e dia 29, o de São Pedro. Junho é todo perfumado por histórias ancestrais e, de menina, me contaram a maior de todas as histórias: a vida se refaz, sempre que uma vida se oferta a outra.

Sim, “a morte é destino de todo mundo”. Um sertanejo, sobrevivente do assassinato do pai, até disse mais bonito, porque disse com sentimento, que a morte “é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo morre”.

Sim, destino irremediável, mas se pode remediar a vida até a morte – com cuidado, com respeito, com compaixão, com esperança. Cada chance importa. O que não é destino de ninguém é desviver, senhor cidadão. Sem cuidado, sem respeito, sem compaixão, sem esperança, sem chance. Sem nem despedida; desaparecer.

A pandemia de Covid-19 cruza o planeta, desde dezembro, e atravessa este junho. É mesmo difícil dizer, quando esvaziaram as palavras. Acontece que ainda nos resta o grito e o canto, e a resistência porque há o sonho. Olha pro céu, meu amor, veja: o infinito. Vamos escapar por ali; nós, passarinhos.

Foi numa noite, igual a essa, que quem soube fez a hora. Também agora é proibido cochilar – até amanhecer outro tempo. Sigo o roteiro, mais uma estação. Que falta eu sinto de um bem, contra essa marcha do ódio. Mas olha pro céu, meu amor, que eu também vou olhar. Vamos, juntos, até o dia clarear.

Junho é sempre junho: acende a fogueira do meu coração. Amo. “E o coração, de repente, bota o sangue em alvoroço”. De novo, por dentro tudo se alumia. A alma, porque é liberta, avoa que nem balão proibido. Gosto do baião-de-dois-com-paçoca-e-vatapá, do milho verde, da pamonha, da cocada, do pé-de-moleque, do grude, do aluá. E quando se experimenta o gosto da vida, mesmo quando tem um pouco de cravo e canela, é difícil desgostar.

“Mesmo quando é a explosão

de uma vida severina.”

Assim e além, sempre haverá dias de juntar amor e quermesse, juntar utopia e fé. Juntar o grito dos cantos do mundo, João Pedro e George Floyd. Refazer uma vida na outra e se recusar a morrer de morte matada. Resistir, (re)encontrar. Olha pro céu, meu amor, que eu também vou olhar. Vejamos o infinito. Há o belo em cada dia.

Neste junho desterrado, eu contraponho: vou anistiar as saudades. Vou colocar um Cariri nos vãos da minha casa, e um sítio Casarão, cheio de gente reinventada, e uma rua que venceu as enchentes. No isolamento ou nas solidões, é urgente revisitar a alegria, abraçar o que nos salva.

E viva Santo Antônio, São João, São Pedro!

Viva, viva, viva!

(Até que a morte se faça destino, é direito de todo mundo não desviver)

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