Quarentena 3] Saudades, sonhos e besteiras em geral

Temos conversado, apesar dos pesares, sobre vida e amor: eu, uma amiga e um amigo. Cada um no seu quadrado. Vez em quando, entre domingos, aniversários e feriados, trocamos perguntas e respostas sobre o que nos restará depois de tudo, apesar dos pesares: vida e amor. Somos (e reconhecemos) três ingênuos a escrever, ridicularmente, para o tempo. E, vez em quando, entre domingos, aniversários e feriados, somos felizes por isso. Clandestinamente.

Ninguém nos lê, “curte ou compartilha” (para atualizar). E não seremos mais cobrados por best-sellers. Não haverá, outra vez, a chance da juventude, de todos os livros e dos leitores que sustentarão nossos devaneios. Ainda assim, vida e amor estão aí, para nós, os clandestinos.

E nos esbaldamos, sem pudores. Escrevemos saudades e sonhos, besteiras em geral. Coisas entre amigos de todos os tempos. A propósito, já temos uma coletânea considerável de filosofias vãs, nosso apurado das madrugadas. Certezas do tipo: “vai ficar tudo bem” – certo, mas quando? e como saberemos quando já for tudo bem? (afinal, tantas vezes, não soubemos).

Minha amiga acredita que ficará tudo bem quando ela se apaixonar outra (milésima) vez. Então, “seremos felizes em Paris”. Meu amigo pensa que ficará tudo bem quando ele trair. Então, “acaba a chatice”. E eu já nem digo “sim”, ou “não”. Tudo o que eu sei, até aqui, é que ainda nos restará vida e amor, apesar dos pesares.

P.S. reuni, neste post, mais uma parte do inventário particular das horas, que tenho feito nesta quarentena. Um pouco do mundo de casa, paralelo ao mundo da pandemia do novo coronavírus e ao Brasil de sempre. É um retrato falado da vida e dos amores cotidianos, que tenho publicado no Instagram @anadossupiros.

(os dias têm sido assim)
em um dia quente, no Semiário do Ceará, Nordeste do Brasil, uma sertaneja me deu um tempo de presente: o tempo bonito de chover. tomamos café coado, caminhamos até o açude e o mundo, onde as crias se espalham: galinhas no terreiro, o rapaz já no Rio de Janeiro, a moça na Capital. até onde a vista e as saudades alcançaram, divisamos a construção do sitio, os vizinhos que existiam, o namoro na novena, o caminho das águas. na época, era uma reportagem que esperava, junto com os filhos da terra-seca, a volta da chuva-feito mãe que alenta. o céu, as formigas e as árvores já lhe anunciavam a chegada. e aquela sertaneja, emocionada como quem vê um filho, um amor, desembarcar na poeira das horas, me disse da vontade-menina de guardar cada pingo d’água que caísse do céu. achei a declaração tão, simplesmente, bonita, que não esqueci. (o bonito também marca o viver). agora, toda vida que chove, eu mergulho no pingo d’água.
(quarentena, dia mil e um)
hoje, a tristeza bateu forte. desde que tudo isso começou, aliás, desde antes, quando o desamor foi eleito para o governo dos dias, ela vem batendo devagar, machucando a esperança. há defesas possíveis, e tantos temos sido resistência e, além, resiliência. mas hoje, por causa do tempo nublado, das notícias de mil mortes, do colapso na saúde pública, da politicagem desumana, dos mesmos bêbados na praça em frente de casa comemorando o sábado, a tristeza bateu forte. pensei em escrever o contrário, porque um mundo paralelo também (sempre) é feito, mas me deixei levar por essa borboleta da foto, que cruzou o caminho. não tenho inspiração para reverter esse instante, é assim mesmo, a tristeza também é caminho e é preciso atravessá-la. então, sem ter palavra, precisei sair para comprar o pão. na volta, o sinal parado na av. 13 de Maio com a Marechal Deodoro, um homem catava o de comer no canteiro. barba por fazer, roupa sem cor, a idade perdida. mas se mantinha sóbrio e digno, na lida de alimentar a si e aos seus, tanto que, quando o motorista dianteiro lhe deu um bom dia e um saco de comida, os olhos dele se acenderam. ele agradeceu com a própria luz que o iluminou. é muito bonito quando um ser humano ilumina outro, já viram? foi só o tempo de o sinal abrir. dobrei na chamada pracinha da Gentilândia e uma freira, em uma Kombi, distribuía quentinha para os moradores dos bancos e das árvores. aquela cena, de acender vagalumes, me emocionou.
é esse o meu dizer desse instante e meu pão de cada dia… e se eu pudesse falar mais sobre o ofício de escrever, assim no jornalismo como na vida, eu (me) diria: olhe nos olhos dos outros. é a alma que tem fome de tudo.
(apurado do dia)
eu e Deus. e vice-versa.
(vamos juntxs)
o catolicismo me ensina a seguir o bem;
o espiritismo me ensina a fazer o bem;
o budismo me ensina que existe o bem;
as crenças africanas me ensinam a respeitar o bem…
e assim vamos, somando caminhos até a paz comum. eu acredito na força transcendente dos encontros, vejo beleza nas diferenças e ainda tenho fé na vida. por hoje, é isso, amigxs.
paz e bem,
abraços daqui,
(apurado da noite)
(apurado do tempo)
troque a culpa – de ter uma casa e poder ficar nela, de ter o que comer, de ter saúde, de ter condições de se cuidar e até de ter quem se importa com você – pela gratidão. além de lhe conectar com a vida de cada dia, é a gratidão que vai lhe conduzir até a empatia, a solidariedade, a compaixão. desejar (e possibilitar) o bem ao próximo só é possível quando sentimos o bem em nós. eu acho.
(cotidiano-postal)
(apurado do tempo)
hoje, no meio do isolamento social, é dia de mais um aniversário na minha (grande) família. e eu cresci no espaço ilimitado dos encontros, traçados desde o quintal dos meus avós maternos. tenho fotos, e sons (violões, cavaquinhos, pandeiros…), e sabores, e festas, e quintal guardados…
hoje é aniversário de uma tia que mais me lembra a minha avó-mãe-da-minha-mãe, por gostar tanto de gente (toda gente) na casa dela (e não importa o tamanho da casa, sempre tem cadeira para os agregados). é também a tia da minha infância, que pastorava a gente, algumas tardes, enquanto meus pais trabalhavam. sabe aquelas tias que você acha que nunca vai deixar de cuidar de alguém? que sempre vai fazer bolo, paçoca e lembrancinhas (de casamento, de nascimento, de 1 a 80 anos)? que acerta nos presentes? que toda tarde tem café-com-pão? que toda vida vai dar um jeito pra tudo? pois é essa.
então, saudades do que seria hoje, na casa dela.
mas, por telefone, ela já me disse que, quando tudo isso passar, vai “juntar todos os aniversários”. amém!
(pequena anotação da noite)
querida amiga,
sonhei com você. nós nos encontramos, por acaso, no Centro. você estava mais loira (rs), mais magra e, principalmente, mais feliz. sorriso novo. conversamos sobre depressão, pulmões e sobre se recuperar. você me disse para viver a vida, eu lhe falei para aproveitar o dia. foi um sonho tão vivo, que senti nossas mãos dadas no meio de tudo. sigamos.
(antes que termine o dia)
hoje, o pensamento não quis pensar. entre mortos e (sonhos) feridos, seja pela Covid-19 ou pelos políticos brasileiros, pouco se salvou aqui, por dentro. mas navegar é preciso, concordo e seguro a onda. então, limpando arquivos, encontrei essa foto do Parque do Cocó, tirada no final do ano passado. aí, me lembrei do que escrevi ao grupo de trabalho, por estes dias:
“Nada será como antes, essa é a dinâmica natural da vida. E o ‘depois’ sempre existirá para o refazer e a reescrita de cada lugar, de cada um e de toda história. Cada tempo que se vive é singular porque é único. E é mais uma chance. Tem uma frase da Clarice Lispector que anda comigo: ‘Viver ultrapassa qualquer entendimento’. Já não tento mais compreender o mistério, aprendo a confiar nele. É a confiança que me faz atravessar o escuro. Acredito que há o outro lado (até porque minha profissão me ensina assim – rs), ainda não conheci rio com apenas uma margem. Do lado de lá, tem o resto do caminho. Sigamos a travessia: ora, guiando o barco, com a força e a sabedoria que já temos; ora, soltando um pouco o leme, para ver a paisagem. Eu acho que é mais ou menos assim.”
… ver a flor da perspectiva do céu.

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